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Sérgio Godinho: canção Liberdade "é um graffiti em rock"
Rúben Viegas

Sérgio Godinho: canção Liberdade "é um graffiti em rock"

Início de uma série de entrevistas à volta de músicas sobre a liberdade. Os 50 anos do 25 de Abril são só o mote.

Sérgio Godinho é um dos maiores colossos vivos da música portuguesa e uma referência omnipresente em músicas de magnetismo pela liberdade das últimas cinco décadas e meia. A grandeza dos seus temas mede-se no tempo e na sua intemporalidade, como se estivessem condenadas a serem reavivadas perpetuamente.

Essa permanente renovação ficou novamente evidente no seu atual espetáculo ao vivo, "Liberdade25", com que lotou várias noites nos coliseus de Lisboa e do Porto, em que a mensagem ativista tem um papel relevante. A entrevista foi feita durante os preparativos para este espetáculo.  

Lembras-te de como surgiu a canção Liberdade na tua cabeça?
Sempre disse que era uma espécie de graffiti em rock. Havia [na altura] muitos slogans mistos. Havia um graffiti de onde tirei a ideia e que me fez refletir. Não é por acaso que a canção se chama 'Liberdade'. Além desses itens [paz, pão, habitação, saúde, educação], o importante da canção é dizer que só há liberdade a sério quando "houver a liberdade de mudar e de decidir", porque muitas vezes não há essa liberdade de mudar, vindo de nós mesmos, ou de circunstâncias superiores. É evidente que na altura do fascismo, a liberdade de mudar estava mais condicionada. Não é por acaso que muita gente como eu foi para fora. Esses conteúdos só fazem sentido se não se tornarem palavras ocas e se corresponderem a qualquer coisa de real e de substantivo. Este país é ainda muito insuficiente nesses itens. 

Entrevista a Sérgio Godinho

Essa música teve um impacto imediato assim que foi publicada?
Nunca foi imediato, imediato. É curioso porque uma canção-emblema como o Primeiro Dia, quanto a interpretei as primeiras vezes, não aconteceu aquele momento de "uau!, está aqui uma canção diferente". As pessoas têm que ter um tempo de digestão. Até é bom que seja assim. 

É incrivelmente atual, a frase "Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação", porque é aquilo que sentimos hoje. Estamos a sentir essa falta.
Não estamos em condições de aplaudir muito esses itens. Mas faria sempre sentido, porque é impossível vivermos numa sociedade perfeita. Há sempre insuficiências, mas agora há algumas gritantes. Se pensarmos na altura em que se criou o SNS [Serviço Nacional de Saúde], foi um ato muito importante e que marcou. Evidentemente, está com muitos problemas, com as greves dos médicos. Cada qual tem os seus problemas, a habitação é outro caso. 

O "Maré Alta" é de 1971. Foi uma premonição, já vias uns reflexos de uma liberdade a aproximarem-se? 
Ele tem uma premissa: "a liberdade está a passar por aqui". Ao fim de contas, é uma vontade, mas é também uma afirmação: "o solo que pisamos é livre" e, portanto, temos que o defender e criar, com mais liberdade. Sobre a premonição, "prognósticos, só no fim do jogo". Mas é uma vontade, com certeza. Só depois é que percebi que os títulos de cada um dos três álbuns tinham uma sequência histórica. "Os Sobreviventes" tinha a ver com o que passámos e com o que sobrevivemos. O "Pré-Histórias" parece que já está a anunciar qualquer coisa. E o "À Queima Roupa" é quando já estás no meio do turbilhão depois de 1974.    

Entrevista a Sérgio Godinho

Também desse álbum, a abri-lo, está a música com grande sensibilidade para com os trabalhadores, 'Que Força É Essa': "Que força é essa? Que trazes nos braços? Que só te serve para obedecer?"
A ideia é essa, para que não sirva só para obedecer, porque a força já existe. A Capicua canta essa canção e fez uma nova letra, num espetáculo conjunto, Conta-me Uma Canção [ocorrido em janeiro deste ano no Teatro Maria Matos, em Lisboa]. Pediu-me licença para fazer uma letra mais pessoal, foi muito interessante. Adoro a Ana. Já tinha feito o 'Parto sem Dor'.  

Se a 'Liberdade' é uma música de encanto com a revolução, o 'Primeiro Dia' é uma música de desencanto? 
Não, é uma rutura, uma reconversão e uma recomposição de si próprio. Nessa altura, estava-se à toa e corresponde a uma rutura amorosa minha, embora só em parte esteja transposto. Mas podia não ser só uma rutura de amor e ter um sentido mais lato. 

E ganhou esse sentido lato.
Sim, porque tem um sentido aberto, até que uma pessoa se reencontre consigo mesma e se reconstrua. Por isso é que eu digo no final: "Brinda-se aos amores com o vinho da casa", uma casa que, no sentido metafórico, somos nós. 

Lembras-te da primeira vez em que ouviste o 'Grândola Vila Morena'?
Lembro-me. Fui ouvir rapidamente, porque o José Mário [Branco] me mostrou, porque foi ele que fez os arranjos.

E que extraordinários arranjos.
Muito bons! Foi a primeira vez que o Zé Mário se aventurou noutro tipo de arranjos para o Zeca. Ele deu um abanão ao Zeca por causa de certos instrumentos, como os trompetes no Coro da Primavera, etc. O Zeca precisava de uma mudança e queria-a. Não é por acaso que chama o Zé Mário outra vez para o [álbum de 1973] "Venham Mais Cinco", que tinha arranjos excelentes, que considero superiores até, embora no global, talvez as canções do "Cantigas do Maio" sejam mais fortes, além de ter o 'Grândola', a música da senha. [9:23]   

Enquanto espectador, o Sérgio esteve presente no concerto do Zeca Afonso no Coliseu dos Recreios, em 1983. Tenho a certeza que terá cantado o 'Vampiros', tal como muita gente. E pegou depois nessa música para uma versão no [álbum] "Caríssimas Canções".
E continuo a cantá-la muitas vezes ao vivo. É uma versão muito diferente. É uma canção paradigmática. Quando a ouvi com 18 anos, percebi que se podia escrever em português de outra maneira e é uma canção com uma metáfora tão evidente. Naquela altura, foi um ato de coragem. 

O Sérgio também tentou fintar a censura com músicas não tão óbvias dos seus primeiros discos, como, sei lá, o 'Charlatão'.
Sim, e o 'Que Bom Que É' que tem referências à Guerra Colonial ["Vivo com a guerra a bater à minha porta/Que bom que é, que bom que é"]. Ou a 'Cantiga da Velha Mãe e dos Seus Dois Filhos'. Estão no limite. Nessa altura, a censura já tinha uma grande incoerência interna, já não sabia com que linhas se coser. O meu primeiro disco "Os Sobreviventes" chegou a ser retirado das lojas e depois reposto. Era uma altura de decadência óbvia do regime. 

Entrevista a Sérgio Godinho

Que músicas de intervenção de outros mexeram especialmente contigo?
Não gosto muito do termo de intervenção, não sei o que isso é, mas tudo bem... Há canções do Bob Dylan que, numa primeira fase, foram importantes nesse ponto de vista. Há um disco do Léo Ferré com poemas do Aragon ["Les Chansons d'Aragon", de 1961] que tem uma canção chamada 'L'affiche rouge', que fala sobre os resistentes que foram fuzilados [em França pelos nazis alemães] durante a II Guerra [Mundial]. Há muitas músicas que me tocam, nem sempre as mais óbvias, e que me tocam por alguma razão. 

E do Brasil?
Do Brasil, com certeza, [como] do Chico [Buarque]. Eles apresentavam uma versão sabendo que não ia ser aprovada. Depois mudavam uma coisitas e lá conseguiam que aquilo fosse aprovado. Há canções que têm uma mensagem óbvia. "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia" é uma referência a um presidente. Há muitas canções, como aquela do Geraldo Vandré, 'Pra não dizer que não falei das Flores'. 

Vamos publicar entrevistas sobre músicas da liberdade às terças e sextas, ao longo dos meses de abril e maio. A próxima entrevista a ser publicada é com Pedro Adão e Silva, que ocupou até este ano as funções de Ministro da Cultura e comissário executivo das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.
 

Gonçalo Palma

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